Desde 2018, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem sido considerado uma referência na adoção ética, eficiente e responsável da inteligência artificial no Poder Judiciário brasileiro. A Corte vem adotando, com base em diretrizes normativas, resoluções internas e formação contínua dos servidores e ministros, medidas para trazer inovações tecnológicas aplicadas à magistratura.
Há três meses, deu um novo passo: o lançamento do STJ Logos, que utiliza IA generativa para permitir interação intuitiva e eficiente com os processos. Desde então, a ferramenta já foi usada 90 mil vezes, como informou o ministro Herman Benjamin, presidente do STJ, que deu entrevista ao Correio sobre a iniciativa.
Segundo ele, o STJ está passando por um processo de transformação e aprendizado contínuo, desenvolvendo competências híbridas que combinam conhecimento legal profundo e tecnologia. A IA, na avaliação do ministro, vai contribuir para reduzir disparidades em sentenças de causas semelhantes e aumentar a segurança jurídica. “Além disso, acelera os julgamentos, o que é fundamental para a efetividade dos direitos. A celeridade processual amplia o acesso à Justiça, especialmente para populações vulneráveis”, disse. A seguir, trechos da entrevista exclusiva ao Correio.
Como o STJ está se adaptando ao uso de ferramentas de IA no dia a dia da Corte?
O
STJ tem distinguido o uso da inteligência artificial tradicional,
voltada à automação de tarefas, da inteligência artificial generativa,
capaz de interagir com linguagem natural e produzir conteúdos com base
em grandes volumes de dados. As ferramentas lançadas recentemente
elevaram o tribunal a um novo patamar tecnológico, destacando-se o STJ
Logos, que utiliza IA generativa para permitir interação intuitiva e
eficiente com os processos. Em apenas três meses, a ferramenta já foi
utilizada mais de 90 mil vezes.
Esse processo envolve todos os setores do tribunal?
Para
garantir uma transição responsável, o STJ desenvolveu um programa
abrangente de conscientização e capacitação, envolvendo magistrados,
servidores e colaboradores — incluindo os servidores recém-empossados,
que já passaram por formação específica em IA generativa. Esse processo
formativo assegura não apenas a competência técnica no uso das
ferramentas, mas também a aderência rigorosa aos parâmetros éticos e
funcionais estabelecidos pela Resolução nº 615 do CNJ.
Qual é o maior compromisso da Corte?
Um
aspecto fundamental da estratégia institucional é o cuidado em não
anunciar planos ou soluções hipotéticas: no STJ, só se comunica aquilo
que já começou a ser efetivamente implementado. Essa diretriz reflete o
compromisso da Corte com uma inovação tecnológica sustentada por
responsabilidade, seriedade e governança, mantendo o tribunal como
referência na implementação ética e eficiente da IA.
Qual é a maior dificuldade para o uso de IA na prestação da justiça?
O
principal desafio reside na convergência entre duas expertises
distintas: o domínio jurídico tradicional e as habilidades tecnológicas
emergentes, especificamente a construção de comandos precisos e eficazes
para que a IA compreenda adequadamente as nuances e complexidades do
raciocínio jurídico. O STJ está passando por um processo de
transformação e aprendizado contínuo, desenvolvendo competências
híbridas que combinam conhecimento legal profundo e tecnologia. Isso
inclui aprender a traduzir conceitos jurídicos abstratos em linguagem
que os algoritmos possam processar eficientemente, sem perder a precisão
técnica e a sensibilidade interpretativa que caracterizam o trabalho
judicial. O desafio é grande, considerando que cada área do direito
possui suas particularidades, exigindo refinamento específico. Trata-se
de uma revolução na formação e na prática jurídica, demandando
investimento contínuo em capacitação e experimentação para obtermos os
melhores resultados.
A IA contribui significativamente para a promoção dos direitos humanos por múltiplas formas. Primeiramente, promove segurança jurídica, ao facilitar que causas semelhantes tenham soluções semelhantes, reduzindo disparidades e garantindo tratamento equitativo perante a lei. Além disso, acelera os julgamentos, o que é fundamental para a efetividade dos direitos. A celeridade processual amplia o acesso à Justiça, especialmente para populações vulneráveis. A IA também democratiza o conhecimento jurídico ao facilitar a identificação de precedentes e jurisprudência, permitindo decisões mais fundamentadas e consistentes. Na sociedade, essas melhorias se traduzem em maior confiança no sistema judicial, redução de custos processuais e, consequentemente, um ambiente mais propício ao exercício pleno da cidadania e dos direitos fundamentais.
Considerando
que a IA pode aprender com dados históricos, não haveria o risco de ela
reproduzir ou até amplificar preconceitos existentes?
Sim,
esse é um risco real e amplamente reconhecido pela comunidade jurídica e
tecnológica. Os algoritmos podem perpetuar e até amplificar vieses
presentes em dados históricos, que muitas vezes refletem desigualdades e
discriminações sociais do passado. Consciente dessa problemática, o STJ
adotou um protocolo rigoroso de governança: toda aplicação de IA opera
exclusivamente sob supervisão humana qualificada. Os resultados
apresentados pela IA passam sempre por análise crítica e conferência de
magistrados e servidores especializados antes de serem efetivamente
utilizados. Dessa forma, a IA atua como ferramenta de apoio, mas a
decisão judicial permanece essencialmente humana.
É possível conciliar produtividade e ética quando se usa IA para análise de processos?
Não
apenas é possível, como é imperativo. A conciliação entre produtividade
e ética traz desafios e oportunidades na modernização do Poder
Judiciário. A sociedade contemporânea espera do sistema judicial não só
rapidez, mas também uma análise humanizada e sensível de suas causas,
considerando as particularidades e nuances que só o discernimento humano
pode captar. A IA atua como catalisadora dessa conciliação ao
automatizar tarefas repetitivas e de triagem e auxiliar na análise de
questões repetitivas, liberando magistrados e servidores para se
concentrarem nos aspectos mais complexos e sensíveis de cada caso.
Isso agiliza os processos?
Exato.
Isso permite produzir decisões mais rápidas sem comprometer a qualidade
da análise jurídica. O desafio está em estabelecer protocolos claros
que garantam que a eficiência tecnológica não substitua o julgamento
humano, mas sim, o potencialize. A ética, nesse contexto, não é um
obstáculo à produtividade, mas sim, sua bússola orientadora, assegurando
que cada decisão judicial mantenha sua legitimidade, fundamentação
adequada e respeito aos direitos fundamentais.